O Retorno do Pajé: A Revolução da Floresta
Por Leonardo Lessin
Há uma samaúma na aldeia Morada Nova, no rio Envira, onde a catedral da floresta se forma naturalmente entre suas raízes colossais. Ali, sob a copa dessa árvore que filtra a luz da lua cheia, cerca de cem pessoas consagram o huni (ayahuasca) numa noite de céu estrelado em setembro de 2019. Gente de diversos povos: Shanenawa, Huni Kuin, Puyanawa, entre outros tantos parentes de outras aldeias e terras indígenas do Acre. E alguns nawa (não-indígenas) que, como eu, haviam viajado de longe para estar ali. Todos bailando ou meditando concentrados, ninguém brigando, ninguém chorando. Carlos Brandão Shanenawa, cacique da Morada Nova, observa e diz: "Do jeito que a natureza pede nós estamos fazendo e eu estou muito feliz." Não é festa. É celebração com pajelança. É o retorno de um espírito que quase se perdeu no tempo do aviamento, quando os barões da borracha proibiram tudo que era indígena, quando as missões evangélicas demonizaram o cipó, quando ser índio era vergonha.
NÃO É FESTA. É CELEBRAÇÃO COM PAJELANÇA. É O RETORNO DE UM ESPÍRITO QUE QUASE SE PERDEU NO TEMPO DO AVIAMENTO, QUANDO OS BARÕES DA BORRACHA PROIBIRAM TUDO QUE ERA INDÍGENA.
Essa cena que presenciei em 2019 é fruto de uma transformação que começou décadas antes. Desde os anos 1990, algumas lideranças Huni Kuin vinham resgatando sua espiritualidade e expandindo sua cultura. O movimento ganhou força nos anos 2000, quando figuras como Fabiano Huni Kuin, Benke Ashaninka, Biraci Yawanawa, Erison Nukini, Haru Kuntanawa, Tuin Nova Era, Nainawa Pai da Mata começaram a circular o Brasil do mundo articulando uma rede de aliados em um processo de revitalização cultural que atravessaria etnias, rios e fronteiras internacionais. Fabiano Huni Kuin foi pioneiro ao levar os rituais para o Rio de Janeiro, criando o movimento Guardiões da Floresta e fazendo o que antes seria impensável: realizar cerimônias com ayahuasca nas cidades. Depois vieram os grandes festivais – o Yawanawa, o Corredor Pano - juntando povos inteiros numa celebração que era, simultaneamente, resistência política e renascimento espiritual.
Zezinho Yube Huni Kuin, cineasta e ex-secretário dos Povos Indígenas do governo do Acre, testemunhou essa revolução cultural aldeia por aldeia no Acre. No início ele questionou: "será que estamos vendendo nosso conhecimento pros brancos?" Mas quando vivenciou entendeu o novo processo em curso. Foi quando percebeu o benefício estratégico: enquanto igrejas evangélicas seguiam convertendo, enquanto o forró e as danças dos brancos adentravam as aldeias, essas lideranças respondiam não com isolamento, mas com afirmação: faziam festas tradicionais, fortaleciam rituais, chamavam os nawa não como consumidores, mas como aliados. A ayahuasca não estava sendo vendida. Estava sendo usada como sempre foi pelos pajés antigos: para fazer alianças. Só que agora as alianças não eram apenas com os espíritos da mata, com os donos dos animais, com as forças das diferentes dimensões do cosmos. Eram também com pessoas de outras partes do mundo, novos parceiros capazes de ajudar a proteger o território, fortalecer a cultura e talvez garantir a autonomia econômica e política das aldeias no Acre.
Carlos Shanenawa lembra exatamente quando decidiu mudar tudo. Houve um festival na sua aldeia em 2016 com confusão, bebida, gente caída, mulheres chorando. "É a última festa de branco, agora vai ser só festa tradicional", disse para Zezinho. E foi o que fez. No festival seguinte, sete dias de celebração com ayahuasca, cantos, danças, pinturas. Quando acabou, o contraste era evidente: todo mundo se abraçando, sentindo paz, conectados com a natureza. Diferente dos festivais antigos que sempre acabavam em briga. Carlos viu o cacique Assis do Pinuya falar no microfone num festival no Caucho: "Antes a gente trazia duas, três grades de cachaça, e agora nós trouxemos quatro litros de nixi pae para compartilhar com nossos irmãos." A inversão estava completa: a medicina da floresta expulsando o veneno da cidade.
Arte de Fernanda Cervantes.
Para os Puyanawa o retorno do pajé começou quando Luis Puyanawa voltou de um festival na T.I. Huni Kuin do rio do Breu. Lá bebeu caiçuma, passou rapé, tomou ayahuasca (nixi pae), e voltou com uma ideia fixa: "quando chegar na minha terra vou falar para os parentes começar a valorizar mais a cultura."
Acompanhei essa história desde o início. Cheguei ao Acre em 2003 para trabalhar em Cruzeiro do Sul. Na segunda semana já fui beber ayahuasca pela primeira vez no núcleo da UDV. Ainda naquele ano visitei minha primeira Terra Indígena – justamente a TI Puyanawa em Mâncio Lima, a convite de Luís Puwe Puyanawa. Conheci Puwe junto com Osmildo e Haru Kuntanawa, Erisson (Xinti) e Luís Nukini na OPIRJ (Organização dos Povos Indígenas do Vale do Juruá). Era ali que nos encontrávamos para conversar e passar um rapé.
Quando estive nos Puyanawa em 2003, os trabalhos com ayahuasca estavam no começo. O grupo era pequeno – talvez vinte ou trinta pessoas. Samuel Puyanawa, professor da escola na Terra Indígena ainda não estava junto com Puwe nessa empreitada. "Samuel, bora revitalizar nossa cultura", dizia Luís. Ele aderiu e, com o passar do tempo, o grupo foi crescendo. Em 2011 a expansão Puyanawa do uso da ayahuasca exigiu um reposicionamento do cacique em relação aos trabalhos. O problema: o cacique tinha virado evangélico junto com toda a família. Isso gerou uma tensão que só foi resolvida com a desconversão da religião do branco para reconversão à cosmologia puyanawa através da ayahuasca – momento em que Joel Puyanawa deixou de ser pastor evangélico e se tornou um cacique ayahuasqueiro.
A influência de Benke Ashaninka e de Biraci Yawanawa foi decisiva. Foi através deles que o pai de Joel que ainda era cacique publicamente deu sua anuência para que a ayahuasca fosse considerada prática legítima que fazia parte da cultura Puyanawa. Era chegado o tempo de resgatar o conhecimento ancestral e fortalecer a cultura indígena, acompanhando o que estava acontecendo com êxito também com outros povos.
Recordei toda essa história junto com Samuel numa tarde de domingo inesquecível, no belíssimo terreiro de areia branca onde acontecem hoje os rituais coletivos com ayahuasca. Era o último dia da Conferência Indígena da Ayahuasca em 2018. Ele também recordava que em 2005 o pai que era professor passou a responsabilidade para ele. Ele pensou: E, agora? "Como vou ensinar sem saber?" A ayahuasca, diz ele, virou sua professora. Pediu na força, com fé, e a medicina mostrou.
"Foi através da ayahuasca. Ela mostrou o que vivíamos antes dos antepassados, o sofrimento pelo que passaram e até onde estamos. O cipó transforma mente e coração. Num coração de luz, num coração que declara palavras verdadeiras, palavras adocicadas. As pessoas perguntam: como é que vocês falam assim? É a transformação que a bebida dá."
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Essa transformação que Samuel descreve tem raízes históricas profundas e dolorosas. A maioria do povo Puyanawa tinha perdido tudo – rapé, caiçuma, sananga, artesanato. Quando os antigos foram capturados pelos capangas do Coronel Mâncio Lima, qualquer prática cultural foi impedida. Samuel e sua geração nasceram sem esse conhecimento, sem esse espírito. A ayahuasca, diz ele, mostrou tudo de volta: "A gente é indígena, é caracterizado, mas se não fala a língua, não canta nossos cantos, não conta nossas histórias, não tem o espírito. Ele ficou lá atrás. Quando se entrega e começa a beber ayahuasca, a espiritualidade volta a mover dentro de si, incorporando na gente. Daí a gente muda totalmente."
A MUDANÇA NÃO FOI SÓ ESPIRITUAL. FOI TAMBÉM MATERIAL – E ESSA DIMENSÃO CONCRETA SEPARA ESSE MOVIMENTO DE QUALQUER ROMANTISMO NEW AGE. TRATA-SE DE ESTRATÉGIA POLÍTICA DE AUTONOMIA.
A mudança não foi só espiritual. Foi também material – e essa dimensão concreta separa esse movimento de qualquer romantismo New Age. Trata-se de estratégia política de autonomia. Os Puyanawa plantaram mais de trinta mil árvores. A aldeia teve sua arquitetura tradicional revitalizada. Criaram uma cooperativa agrícola para produzirem toneladas de farinha por ano sem desmatar. As casas mudaram: cobertura de palha canaraí, móveis feitos artesanalmente com cipó. Até a visão dos brancos da cidade mudou. Empresários, gerentes de banco, delegados da polícia federal começaram a frequentar os rituais, vendo que os indígenas têm conhecimento, organização, sabedoria.
Como observamos, o caminho foi árduo e o começo não foi fácil. As lideranças antigas criticavam duramente: "Eles não são pajé, nunca fizeram dieta, estão enganando os brancos, é muito novo." Zezinho pensava igual. A virada aconteceu quando ele presenciou e vivenciou os rituais e entendeu algo fundamental: "Para curar não precisa ser pajé. A própria música, os cantos, as medicinas são a cura! Ayahuasca, rapé, sananga, kambô, isso cura, quem cura não são as pessoas, são as medicinas da floresta." Estava acontecendo algo maior que ele havia imaginado. Algo que os velhos pajés talvez não tivessem previsto: a pajelança se democratizava, se coletivizava, se multiplicava. O pajé retornava não como figura individual, mas como prática coletiva.
E a expansão internacional? Aqui a estratégia fica ainda mais evidente. Muitos países estão voltados para essas medicinas, acreditando que são transformação, cura para um mundo doente. As pessoas se desconectaram das origens, da natureza, viraram mercado. Zezinho explica: "Quem já usou ayahuasca em centros religiosos quer saber mais." Querem conhecer a floresta, a raiz, os donos da medicina. Há benefício social e financeiro: os txais que participam de rituais no exterior recebem recursos que retornam e transformam aldeias. Novos parceiros e aliados são vitais para o fortalecimento da cultura e para a conquista da sustentabilidade ambiental. Samuel confirma essa experiência: pessoas de fora vêm porque veem o trabalho pela internet, convivem uma semana, sentem a força da floresta, saem curados com nova energia. "Nunca ouvi ninguém dizer: olha, Puyanawa, nunca mais volto. Todos querem retornar."
O cacique Carlos resume a inversão histórica que está em curso: "A ayahuasca está resgatando os valores. Valorizamos língua, medicina, floresta, pajés. Fomos obrigados a falar português e imitar a religião do branco para não morrer. Agora não precisamos mais disso. Agora os brancos vêm pra aldeia aprender com o índio."
Essa inversão tem suas regras. Carlos conta que quando ele vai tomar huni sem o cocar, "pega peia": o espírito do cipó cobra, pergunta cadê o cocar, ensina a maneira certa. A presença de igrejas evangélicas, que foi intensa nas décadas anteriores, tem diminuído significativamente nos últimos cinco anos. Joel Puyanawa, que era evangélico, abandonou a igreja e assumiu a ayahuasca. Zezinho não é contra nenhuma religião – acredita em Deus, em Jesus, assim como na jiboia, em Dua Busê e na espiritualidade indígena. Mas o caminho para a retomada da autonomia é claro: as raízes indígenas se mostram mais sólidas que qualquer conversão estrangeira.
Arte de Michelle Velasco.
Os festivais tornaram-se espaço privilegiado dessa transformação. Muitos povos diferentes se encontram, aprendem uns com os outros, criam alianças que fortalecem todos. O aprendizado circula, se transforma, se adapta. Cada povo traz suas músicas, suas pinturas, seus modos de fazer. E todos bebem juntos, cantam juntos, dançam juntos.
Quando o sol começa a brilhar no verde vivo das folhas, os cantos se acalmam e as pessoas voltam renovadas de suas mirações. É nesse momento de iluminação coletiva que a compreensão emerge. Zezinho observa tudo e conclui: "A gente tá vivendo uma revolução cultural no Acre."
Não é nostalgia. É cosmopolítica ativa – expansão da política para incluir plantas, espíritos, territórios, saberes não-ocidentais como protagonistas legítimos nos debates sobre o futuro global da humanidade. Quando xamãs falam com a voz dos espíritos da floresta, eles recuperam a história que foi silenciada e afirmam sua cultura e seu saber com toda a força e liberdade que sempre lhes pertenceu.
A AYAHUASCA EMERGE COMO TECNOLOGIA DE SOBERANIA.
A ayahuasca emerge como tecnologia de soberania. Os povos indígenas amazônicos demonstram ser possível participar de circuitos globalizados sem subordinação, projetando-se internacionalmente enquanto mantêm enraizamento territorial e cosmológico. Quanto mais se globaliza, mais se indigeniza.
Sob a samaúma, entre cantos que sobem com a fumaça do tabaco, o cipó continua fazendo seu trabalho milenar: tecer alianças para que a vida continue, para que a floresta permaneça, para que os povos indígenas existam não como relíquias do passado, mas como sujeitos propositivos de futuro. O pajé retornou. Mas retornou coletivo, multiplicado, atualizado. Não é mais um só que viaja entre mundos – é o povo inteiro que se move, que negocia, que cura, que ensina.
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Capa de Mariom Luna.
Referências:
LESSIN, Leonardo. O retorno do pajé: o uso indígena contemporâneo da ayahuasca no Acre. In: ARAÚJO, Wladimyr Sena (org.). História e representações em contextos de religiões e religiosidades. São Paulo: Editora Dialética, 2023, pp. 79-111.
Leonardo Lessin
Leonardo Lessin é antropólogo, doutor em Ciências Sociais pela UNESP e pós-doutorado pelo PACC/UFRJ. Professor da UFAC, pesquisa mitologia, rituais de ayahuasca e cosmopolítica xamânica entre os povos indígenas da Amazônia, especialmente no Acre, acompanhando as transformações culturais contemporâneas.