O futuro da ayahuasca em disputa no Brasil

Por Henrique Antunes, Leonardo Lessin e Igor Antunes

A cena parece absurda, mas não é incomum: um líder indígena é parado na estrada enquanto transporta seu medicamento ancestral. O policial, sem saber o que fazer, olha para os frascos como se fossem drogas. Por outro lado, a ayahuasca é exportada para os quatro cantos do mundo para cerimônias na América Latina, Europa, Ásia e até mesmo na Oceania. Entre esses dois extremos há um abismo que revela uma das mais intrigantes contradições do Brasil contemporâneo.

Questões como essas foram debatidas em uma audiência pública realizada em 28 de novembro em Rio Branco, Acre. A audiência foi convocada pelos procuradores Lucas Costa Almeida Dias e Luidgi Merlo Paiva dos Santos e contou com a participação de povos indígenas, representantes de religiões ayahuasqueiras, forças de segurança pública, organizações culturais, além de membros do governo, acadêmicos e pesquisadores.  De acordo com os promotores, a iniciativa foi motivada pela crescente necessidade de regulamentações concretas para o transporte, a coleta e o uso ritual da ayahuasca.

O paradoxo da legalidade

A ayahuasca foi regulamentada no Brasil para uso religioso desde a década de 1980, resultado de um processo pioneiro que envolveu pesquisadores, o governo e comunidades religiosas. Foi uma vitória histórica, resultado de décadas de coordenação. Grupos como Alto Santo e ICEFLU (Santo Daime), União do Vegetal e Barquinha têm se envolvido ativamente desde aquela época, desenvolvendo regulamentações baseadas em suas próprias práticas. Como Fernando de La Roque Couto, da ICEFLU, destacou: "Participamos do GMT em 2006 e 2007, gerando os Princípios Deontológicos que ainda hoje garantem nossos direitos à liberdade religiosa".

Mas essa participação revela um aspecto importante do processo: a regulamentação foi desenvolvida em diálogo com grupos que já tinham estruturas compatíveis com as expectativas do Estado. Essas instituições puderam se adaptar ao modelo religioso porque já possuíam: um CNPJ (Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica), uma estrutura institucional, um calendário ritual fixo e um controle rigoroso da produção. O Alto Santo, por exemplo, mantém registros detalhados de cada lote há décadas, incluindo a quantidade de cipó, folhas, litros produzidos e consumo anual. "Nunca vendemos uma gota de Daime", disse Antônio Alves, representante do centro. "Tudo é para nosso próprio uso."

A regulamentação resultante protege aqueles que já operavam institucionalmente, mas deixa descobertos modos de organização que não se encaixam no modelo igreja-CNPJ. Essa adaptação tem um custo que precisa não pode ser ignorado. Além disso, é preciso reconhecer que a ayahuasca não se originou nas igrejas. Ela vem de muito antes, de sistemas de conhecimento que não operam de acordo com a lógica institucional do estado brasileiro.

MAS ESSA PROTEÇÃO É GEOGRAFICAMENTE LIMITADA E SOCIALMENTE DESIGUAL. ELA FUNCIONA PARA AQUELES QUE PERMANECEM NAS ALDEIAS, DENTRO DAS TERRAS DEMARCADAS. PARA OS MILHARES DE INDÍGENAS QUE VIVEM EM CONTEXTOS URBANOS, ESSA PROTEÇÃO DESAPARECE.

Tecnicamente, as restrições da Resolução do CONAD não se aplicam a rituais realizados em territórios indígenas, onde a Constituição de 1988 garante autonomia. Mas essa proteção é geograficamente limitada e socialmente desigual. Ela funciona para aqueles que permanecem nas aldeias, dentro das terras demarcadas. Para os milhares de indígenas que vivem em contextos urbanos, essa proteção desaparece.

Como relatou Daiara Tukano: "Tivemos que abrir uma igreja para que pudéssemos tomar nossos remédios com segurança na cidade". Os povos indígenas que usam essa bebida há milênios devem se encaixar nas categorias cristãs europeias. Isso mostra que o Estado brasileiro ainda opera com ferramentas conceituais inadequadas para lidar com a diversidade cultural e epistêmica que deveria proteger.

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Uma faca de dois gumes

Como observou o antropólogo Henrique Antunes na audiência: "A regulamentação é uma faca de dois gumes. Ela oferece proteção, mas também controle e restrição. É preciso estabelecer protocolos, adaptar-se, incluir novas práticas e eliminar outras".

O problema, explica Antunes, é que o Estado opera com categorias que não foram criadas para os povos indígenas. Quando se fala em "religião", "igreja" e "CNPJ", parte-se de pressupostos cristãos e burocráticos que simplesmente não se encaixam nas ontologias ameríndias. As cosmopolíticas indígenas da Amazônia são frequentemente performativas, relacionais, ligadas ao território e aos seres da floresta, e não se encaixam nessas estruturas.

O PROBLEMA É QUE O ESTADO OPERA COM CATEGORIAS QUE NÃO FORAM CRIADAS PARA OS POVOS INDÍGENAS.

Essa tensão raramente é reconhecida nos debates públicos. Quando as pessoas exigem "mais fiscalização" e "regulamentações mais rígidas" - e essas exigências surgiram várias vezes na audiência - devemos nos perguntar: fiscalização em favor de quem? Regulamentações de acordo com quais critérios? Porque estruturas burocráticas mais complexas tendem a favorecer aqueles que já têm os recursos para navegar nessas complexidades.

O exemplo do CNPJ é ilustrativo. Ninguém na audiência foi capaz de apontar onde está localizado o documento que instituiu essa exigência para o transporte da ayahuasca. Foi uma daquelas mutações burocráticas que se tornaram a norma sem nunca ter sido lei. E funciona como um filtro: grupos grandes e formalizados conseguem cumprir. As comunidades pequenas e povos originários ficam vulneráveis. Como afirmou Henrique Antunes, "essa exigência não prejudica apenas os povos indígenas, mas também os pequenos grupos que não têm as mesmas estruturas".

O gestor ambiental Igor Antunes questionou os procedimentos burocráticos relacionados ao transporte interestadual da ayahuasca. Na regulamentação do CONAD por meio da Resolução nº 01 de 2010, esse tema é apresentado apenas na seção de propostas, na qual o GMT propõe que o CONAD encaminhe o assunto aos órgãos estaduais competentes para regulamentar o transporte interestadual da ayahuasca, após ouvir as partes interessadas.

De acordo com a resolução, ainda não houve uma definição específica com relação ao transporte do chá, mas sim uma sugestão de que o CONAD encaminhe o assunto aos órgãos estaduais relevantes no futuro para tratar dessa questão. No entanto, a ayahuasca está sendo apreendida com exigências de documentação para seu transporte.

Esses casos demonstram que ainda há dúvidas quanto aos processos burocráticos envolvidos no transporte da ayahuasca. Embora não exista um documento determinando os procedimentos burocráticos necessários para o envio do chá, já está sendo solicitada documentação específica para o seu transporte.

Arte de Pedro Mulinga.

A polêmica da apropriação cultural

A questão da apropriação cultural também foi levantada na audiência, mas de uma forma que merece mais nuances. Elaine Baiana afirmou categoricamente: "Não há como evitar a apropriação cultural" quando pessoas não indígenas realizam trabalhos com a ayahuasca. Essa é uma posição importante, mas não é a única entre os próprios indígenas.

Ao mesmo tempo, vários povos indígenas estão promovendo festivais que acolhem os não indígenas, oferecendo oficinas de músicas tradicionais, permitindo que os participantes façam dietas e até mesmo realizando cerimônias fora de seus territórios. O Festival Eskawatã Kawayai, organizado pelos Huni Kuin, é um exemplo disso, um evento que mobiliza recursos significativos, fortalece alianças políticas e aumenta a conscientização internacional sobre a luta para proteger a floresta.

Como devemos interpretar esse fato? Trata-se de uma forma contemporânea de colonialismo e apropriação que os povos indígenas são forçados a aceitar por necessidade econômica? Ou é a agência indígena construindo novas alianças, usando a ayahuasca como uma ferramenta de diplomacia cósmica, como sugerido pelo Prof. Leonardo Lessin?  "Os povos indígenas se tornaram atores políticos internacionais em defesa da Amazônia. Conheci pessoas da família real britânica no festival indígena. Pessoas de todo o mundo", observou Lessin.

A realidade é que existem várias posições entre os próprios povos indígenas. Francisco Pianko, da Organização dos Povos Indígenas do Rio Juruá, relatou que desde 2016 eles realizam a Conferência Indígena da Ayahuasca justamente para "criar um debate interno nos territórios, porque não é simples, não é a opinião de um pajé que vai responder por isso". Há povos que defendem o uso interno exclusivo, outros que veem o compartilhamento como uma estratégia política e outros ainda que estão experimentando formas híbridas.

Reduzir essa complexidade a "apropriação cultural é sempre ruim" ou "os povos indígenas estão sendo explorados" retira a agência desses povos, como se eles fossem incapazes de fazer escolhas estratégicas. Mas reconhecer o arbítrio não significa ignorar as desigualdades estruturais. Uma coisa é um pajé optar por compartilhar conhecimento em um festival organizado por sua comunidade. Outra bem diferente é um facilitador urbano que aprendeu em um workshop de fim de semana e agora cobra por retiros usando terminologia e canções indígenas sem autorização ou reconhecimento.

O mercado e seus paradoxos

O jornalista e membro do Alto Santo, Altino Machado, descreveu fábricas automatizadas que produzem ayahuasca em escala industrial, exportando-a em forma de gel disfarçada de açaí e fazendo propaganda maciça nas mídias sociais. "Há três fábricas reconhecidas somente em Cruzeiro do Sul", relatou. "Entidades que não têm CNPJ, não têm nome, não têm sócios, mas têm estrutura para produzir em grandes quantidades."

A Resolução 1/2010 do CONAD estabelece limites ambíguos. Ela proíbe a comercialização e o turismo, mas permite que os grupos realizem eventos e intercâmbios religiosos legítimos, desde que não tenham fins lucrativos. Ao mesmo tempo, adverte que essas brechas não devem ser usadas para disfarçar a comercialização da ayahuasca sob o pretexto de fé.

Há uma preocupação crescente com o lado lucrativo, assimétrico e globalizado da ayahuasca, refletido na expansão dos circuitos internacionais de terapias da Nova Era, oficinas "xamânicas" e retiros de "cura" que cobram três, quatro ou cinco mil dólares por participante.

Paradoxalmente, são os povos indígenas que enfrentam as maiores restrições regulatórias. Os líderes indígenas são abordados nas estradas e precisam justificar o transporte de suas medicinas tradicionais, as quais eventualmente podem ser apreendidas. Enquanto isso, os retiros operam com ampla visibilidade nas mídias sociais, muitas vezes sem escrutínio equivalente.

Quando a Resolução do CONAD foi promulgada, os usos urbanos e indígenas eram muito menos difundidos do que são hoje. Bia Labate, que atuou como consultora durante o processo regulatório, recomendou que o governo convidasse representantes indígenas para participar. No entanto, o governo rejeitou sua recomendação, dizendo que os usos indígenas permaneciam isolados nas aldeias e que tinham suas próprias regras e dinâmicas legais, e que seus assuntos não deveriam fazer parte do escopo do grupo de trabalho. (Labate 2025, comunicação pessoal). Quase vinte anos depois, em meio à crescente presença e protagonismo dos povos indígenas no debate público e nas cenas urbanas de ayahuasca no Brasil e internacionalmente, esse modelo regulatório parece mal equipado para atender às demandas e agendas indígenas.

Quem tem autoridade?

O que essa audiência revelou foi, sobretudo, a profunda desconexão entre as práticas e concepções indígenas e o modelo regulatório, legal e comercial que rege a ayahuasca globalizada. De um lado estão os povos que concebem a bebida como medicina, espírito e tecnologia cosmológica. Do outro, há um aparato estatal treinado para reconhecer apenas "religião", "números de identificação fiscal" e "igrejas".

Como observou Henrique Antunes, "a ayahuasca resiste à classificação. É medicina, é cultura, é espiritualidade, é religião, é um modo de vida, é um instrumento político". Para o xamã Penalva, é o remédio que curou seu câncer, hepatite e gastrite. "Eu considero a ayahuasca como meu médico. O médico dos médicos", disse ele. Isso não é uma metáfora religiosa, é epistemologia terapêutica.

O direito dos povos indígenas de portar, preparar e fazer circular seus medicamentos não decorre de uma concessão normativa recente, mas de uma precedência ontológica e jurídica anterior às igrejas e à própria Constituição.

"A CONVENÇÃO 169 DA OIT EXIGE CONSULTA LIVRE, PRÉVIA E INFORMADA AOS POVOS INDÍGENAS. ISSO NÃO FOI FEITO CORRETAMENTE".

Fernanda Kaingang

Fernanda Kaingang, da Funai, foi enfática: "A Convenção 169 da OIT exige consulta livre, prévia e informada aos povos indígenas. Isso não foi feito corretamente". Há 17 anos, o IPHAN vem arrastando o processo de reconhecimento da ayahuasca como patrimônio imaterial especificamente porque "a consulta aos povos indígenas não foi realizada adequadamente", explicou Diana Giannotti, coordenadora do IPHAN.

Enquanto isso, Fernanda Kaingang denunciou publicamente os pedidos de patente sobre a ayahuasca, enfatizando que os atores corporativos buscam privatizar o conhecimento coletivo antigo sem consulta ou compartilhamento de benefícios. "Quem é consultado? Quem recebe benefícios? Ninguém."

Caminhos possíveis

O juiz federal Jair Fagundes propôs uma solução técnica: retirar a ayahuasca da lista F2 da Resolução 344 da ANVISA, transferindo o controle da esfera penal para a administrativa. É uma proposta interessante que resolveria as restrições imediatas, mas não resolve a questão de fundo: o reconhecimento dos povos indígenas como autoridades legítimas sobre esse conhecimento.

Isso exigiria: consulta real, não apenas formalidades, respeitando o tempo e as estruturas organizacionais de cada povo; reconhecimento formal como patrimônio cultural indígena com consequências legais; um protocolo diferenciado que não exija CNPJ ou estrutura jurídica; e distribuição justa de benefícios quando o conhecimento indígena gerar lucro.

Mas atenção: tudo isso pode se transformar em uma nova camada de burocracia que mais atrapalha do que ajuda. Como adverte Henrique Antunes: "Não podemos simplesmente pegar nossas caixas, nossas categorias, nossas regras e impor o mesmo modelo. Temos que ser sensíveis o suficiente para entender que o que funciona para nós não será necessariamente a melhor maneira para os povos indígenas".

A encruzilhada

O que está em jogo não é apenas a regulamentação de uma bebida, mas o futuro dos povos indígenas. A ayahuasca já saiu da floresta, ela já está globalizada. A questão é: esse processo continuará sendo uma colonização - o conhecimento ancestral se tornando uma mercadoria, os povos indígenas se tornando invisíveis? Devemos estar cientes das complexidades e resistir à tentação de soluções simples. Vamos aguardar os próximos capítulos.

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Capa de Karina Alvarez.


Henrique Fernandes Antunes

Henrique Fernandes Antunes é doutor em Antropologia pela Universidade de São Paulo (USP, Brasil). É coordenador de pesquisa do Chacruna e pesquisador do Programa Internacional de Pós-Doutorado do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP).

Leonardo Lessin

Leonardo Lessin é antropólogo, doutor em Ciências Sociais pela UNESP e pós-doutorado pelo PACC/UFRJ. Professor da UFAC, pesquisa mitologia, rituais de ayahuasca e cosmopolítica xamânica entre os povos indígenas da Amazônia, especialmente no Acre, acompanhando as transformações culturais contemporâneas.

Igor Fernandes Antunes

Igor Antunes é gestor ambiental, possui mestrado em Sustentabilidade e é doutorando em Ciências Ambientais.

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