Repensando o poder, as plantas e o futuro da cultura psicodélica

Por Bia Labate

Queridxs membrxs da nossa comunidade psicodélica global, queridxs amigxs da América Latina, sejam bem-vindxs à Conferência Psychedelic Culture 2025. É uma imensa honra estar aqui diante de vocês neste encontro fundamental de mentes, corpos, experiências e visões. Ao longo dos próximos dois dias, participaremos de debates profundos e transformadores sobre um cenário psicodélico em constante evolução — um campo moldado por uma intrincada relação entre tradição e inovação, espiritualidade e ciência, ativismo de base e investimento financeiro, proibicionismo e marcos regulatórios, realidades locais e dinâmicas globais. A Conferência Psychedelic Culture 2025 (PCU25) se desenrola como um rico mosaico de conversas, entrelaçando histórias pessoais, narrativas culturais, debates sobre políticas públicas e reflexões críticas. Ela reúne vozes de diferentes origens e disciplinas, cada uma oferecendo uma perspectiva única.

Esta conferência trata de muito mais do que substâncias psicodélicas — trata-se das tradições, das histórias e das lutas que envolvem essas plantas, seus territórios e seus usos. Trata-se de reconhecer que essas plantas não são apenas ferramentas de transformação pessoal, mas estão profundamente entrelaçadas a realidades sociais, políticas e ambientais mais amplas. As próprias categorias que usamos para falar sobre elas — termos como “droga”, “substância”, “efeito” e “princípio ativo” — não são neutras; elas refletem e reforçam formas específicas de ver o mundo, maneiras que privilegiam certos tipos de conhecimento enquanto marginalizam outros. Essas classificações criam hierarquias que determinam o que é considerado ciência, o que é considerado medicina, o que é criminalizado e quem tem autoridade para decidir quem tem direito ao uso dessas substâncias. O discurso científico, o saber biomédico, os marcos legais e as políticas públicas repousam sobre essas distinções, muitas vezes apagando as perspectivas daqueles que preservaram essas plantas por séculos.

Com muita frequência, ouvimos os psicodélicos serem chamados simplesmente de “drogas” — um termo carregado de criminalização, estigmas, equívocos e medo. O paradigma proibicionista há muito tempo agrupa substâncias completamente distintas sob a mesma categoria, criminalizando plantas e práticas que são centrais para tradições culturais e espirituais há séculos. Isso não apenas gerou estigmatização social, como também alimentou a violência, a desigualdade e a marginalização de populações indígenas e tradicionais. Em vez de políticas baseadas na repressão e no medo, precisamos defender estruturas regulatórias que respeitem a importância histórica, social e terapêutica dessas plantas, garantindo que a regulamentação não se torne mais uma ferramenta de exclusão.

Embora termos como “substância psicoativa” carreguem um tom mais neutro e científico, eles também podem reduzir essas plantas a seus compostos moleculares, esvaziando-as de suas relações, significados e inserção em redes de reciprocidade entre seres humanos, o mundo natural e o mundo não-humano. Com frequência, o discurso psicodélico se concentra apenas na mente, negligenciando como as experiências com essas plantas são profundamente corporificadas. Em muitas tradições com ayahuasca, por exemplo, a cura e o conhecimento não são apenas processos cognitivos, mas se manifestam através do corpo — pela respiração, pela postura, pelo canto e pelo movimento. No entanto, nos círculos dominantes o diálogo permanece desconectado dessas dimensões corporais, reduzindo a ayahuasca à neuroquímica, sem reconhecê-la como uma prática enraizada em experiências somáticas, vividas e coletivas. Ao traçarmos os caminhos futuros dos psicodélicos, não podemos esquecer que essas tradições são sustentadas não apenas por ideias, mas por modos encarnados de saber.

Show “Music as Origin” ao final do primeiro dia da conferência Psychedelic Culture 2025 com Claudia Cuentas, Javier Trujillo, Mariela Herrera e Gabriel Escobar. 29 de março de 2025, DoubleBlind Magazine.

Quando falamos de ayahuasca, peiote, cogumelos com psilocibina, San Pedro, tabaco ou coca, não estamos nos referindo apenas a suas propriedades químicas; estamos falando de territórios sagrados, de histórias de resistência, de saberes transmitidos por gerações, de rituais que são inseparáveis dos ecossistemas que os sustentam. Reivindicar a linguagem com a qual descrevemos essas plantas faz parte de um esforço maior para questionar paradigmas dominantes, resistir à mercantilização de tradições sagradas e honrar as vozes daqueles que há muito compreendem que essas não são apenas substâncias, mas seres vivos e conscientes, com intencionalidade, que carregam sabedoria, responsabilidade e a possibilidade de novos modos de se relacionar com o mundo.

Neste momento, é fundamental refletirmos criticamente sobre o que a crescente popularização dos psicodélicos significa. Não há dúvidas de que estamos testemunhando uma mudança histórica nas políticas públicas e na percepção social, com estados como Oregon e Colorado (nos Estados Unidos) sendo pioneiros nos marcos legais para o uso de psicodélicos. Embora isso represente novas oportunidades de acesso, é preciso perguntar: acesso para quem? Quem se beneficia com essas mudanças de políticas, e quem está sendo deixado para trás? Estamos diante de um fenômeno em que os esforços de regulamentação muitas vezes negligenciam justamente aqueles que carregaram o fardo da proibição — comunidades marginalizadas, praticantes indígenas e curadores do circuito underground, que mantiveram vivas essas tradições apesar da perseguição legal. A promessa dos psicodélicos como ferramentas de cura não pode se concretizar às custas da exclusão de saberes e práticas indígenas e tradicionais, nem pode ser guiada unicamente por interesses capitalistas. O chamado “renascimento psicodélico” precisa reconhecer os riscos da medicalização excessiva, da mercantilização e do apagamento de contextos históricos e culturais.

A floresta amazônica abriga inúmeras plantas medicinais, muitas das quais são o coração de tradições espirituais e curativas indígenas há séculos. E ainda quando o mundo moderno corre para patentear, extrair e comercializar essas substâncias, as florestas queimam, os rios transbordam, e os povos que protegeram essas tradições enfrentam grilagem, violência e apagamento. É fundamental que os debates sobre acesso e comercialização dos psicodélicos venham acompanhados de compromissos reais com a conservação biocultural e a justa remuneração pelos saberes indígenas.

As conversas sobre psicodélicos não podem estar dissociadas da conservação biocultural, dos direitos territoriais dos povos originários e da justiça climática. Precisamos ir além da visão dos psicodélicos como meras substâncias a serem estudadas e aprovadas por agências reguladoras. É necessário reconhecer que sua sacralidade está atrelada a ecossistemas e tradições culturais que antecedem o modelo médico ocidental. A pergunta não é apenas como integrar os psicodélicos ao ambiente clínico, mas como proteger os mundos de onde eles vêm. O renascimento psicodélico não pode repetir os erros da ciência colonial, que historicamente extraiu conhecimento ignorando seus guardiões originários e as comunidades não-brancas. Se realmente queremos honrar essas medicinas, também devemos honrar os povos e os ecossistemas que as sustentam. Isso significa lutar por políticas que garantam às comunidades indígenas a soberania sobre suas medicinas sagradas, em vez de forçá-las a se adequar a estruturas jurídicas ocidentais que muitas vezes falham em reconhecer suas relações singulares com essas plantas.

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Isso nos leva a um ponto crucial: a medicalização dos psicodélicos é apenas uma parte de um quadro muito mais amplo. A recente rejeição da terapia assistida com MDMA pela FDA (Food and Drug Administration) nos lembra que as instituições governamentais ainda têm dificuldade em reconhecer a legitimidade do potencial terapêutico dos psicodélicos. Mas sejamos claros: a medicalização é um fenômeno bastante recente. A ideia de que essas substâncias só devem ser usadas em ambientes clínicos e sob supervisão de profissionais é uma anomalia quando pensada desde uma perspectiva histórica. A vasta maioria dos usos psicodélicos ao longo da história humana ocorreu fora de estruturas medicalizadas, dentro de contextos espirituais, culturais e sociais. E isso continua sendo verdade hoje. Ao redor do mundo, pessoas se reúnem em cerimônias, comunidades religiosas, contextos sociais com técnicas de redução de danos, círculos terapêuticos underground e diversas redes informais e orgânicas para se relacionar com essas plantas. Precisamos garantir que o discurso biomédico e a classificação legal das substâncias não sejam os únicos moldes a guiar nossas conversas. Embora o acesso regulado pelo Estado, como em Oregon e Colorado, represente avanços importantes rumo à legitimidade, é igualmente essencial reconhecer as formas diversas com que essas substâncias vêm sendo usadas há milênios por comunidades tradicionais e praticantes underground. Os modelos científicos e legais ocidentais precisam dialogar com essas realidades vividas, respeitando as práticas culturais, os valores e as éticas que acompanham o uso dessas plantas.

Enquanto lutamos contra estruturas regulatórias excludentes, também precisamos encarar os vieses históricos dentro do nosso próprio campo. A pesquisa com psicodélicos nem sempre esteve livre de narrativas patologizantes e opressoras — especialmente em relação às comunidades não-brancas e às identidades LGBTQIA+ — e devemos garantir que essas estruturas prejudiciais não tenham lugar no futuro que estamos construindo. A recente carta aberta do Dr. Stan Grof, na qual ele se desculpa por visões passadas sobre psicodélicos e homossexualidade, gerou uma tempestade de controvérsias e acabou de ser publicada no site do Chacruna. Embora tenha sido escrita como um passo rumo à cura, sua carta foi criticada por ser insuficiente, deixando muitas pessoas questionando sua sinceridade. Essa reação evidencia uma verdade fundamental: o progresso real no movimento psicodélico exige mais do que palavras — requer responsabilidade profunda, justiça genuína e um compromisso com o cuidado.

O Chacruna defende firmemente a legitimidade de comunidades de prática responsáveis e autogeridas — sejam tradições espirituais indígenas, igrejas psicodélicas contemporâneas ou coletivos sociais de base — que merecem tanta legitimidade e proteção quanto os contextos de pesquisa clínica. No entanto, esse reconhecimento precisa vir acompanhado de proteções legais concretas, mudanças políticas e estruturas de financiamento que fortaleçam esses modelos diversos, em vez de marginalizá-los. A regulamentação dos psicodélicos não pode priorizar interesses corporativos e farmacêuticos enquanto abandona os modelos comunitários de cura. A pergunta que devemos fazer não é se os psicodélicos devem ser permitidos apenas em contextos médicos, mas como podemos criar estruturas inclusivas que protejam e apoiem os diversos modos de uso dessas plantas.

Mais do que um espaço para investigação acadêmica e diálogo profissional, esta conferência é também uma celebração cultural, uma homenagem às diversas culturas psicodélicas que nos cercam e um momento de união entre nós, que compartilhamos uma paixão em comum. É um momento para nos reunirmos, não apenas como pensadores e defensores da causa, mas como indivíduos que compartilham respeito por essas plantas e um compromisso coletivo com a construção de um futuro psicodélico mais inclusivo, ético, acessível e sustentável. A conferência Psychedelic Culture está se tornando uma tradição na comunidade do Chacruna — uma forma de estarmos juntos, presentes, de participarmos de uma jornada e de uma cerimônia coletiva, de nos abrirmos para aprender, crescer, mudar, sermos vulneráveis, nos conectarmos. Estamos aqui não apenas para trocar ideias, mas também experiências vividas. Estamos aqui porque, mais do que nunca, precisamos nos unir e manter a sanidade em um mundo cheio de autoritarismo, guerras, incêndios, enchentes, doenças, miséria, violência e loucura. Estamos aqui porque precisamos erguer uma bandeira de esperança e otimismo e engajar em um ativismo proativo pelas próximas gerações. Este é também um chamado para nós, enquanto comunidade psicodélica, permanecermos unidos diante dos novos abutres tentando extrair de nós nossas práticas, tradições e conhecimentos. Este é o momento de abrir as portas para xs que estão chegando agora a este campo e ensiná-lxs nossos verdadeiros valores e um bom caminho a seguir. O Chacruna, apesar de seu orçamento enxuto, tem sobrevivido e mantido um lugar de integridade no campo. Representamos um pilar sólido da comunidade psicodélica. E esperamos que vocês se juntem a nós!

Kanyon Sayers-Roods, Fernanda Kaingang, Talita Mendonça, Lígia Duque Platero, Osiris García Cerqueda e Myrriah Jannette na mesa redonda “Indigenous Reciprocity & Decolonial Grassroots Efforts” no segundo dia da conferência Psychedelic Culture 2025. 30 de março de 2025, DoubleBlind Magazine.

Esta conferência é a encarnação do nosso compromisso com a diversidade, a abertura, o diálogo e a colaboração, onde vozes de diferentes tradições, origens e perspectivas são convidadas, desafiadas e honradas. Não somos apenas uma única voz, mas um coro de vozes, múltiplos idiomas, disciplinas e tradições, cada um contribuindo à sua maneira para uma conversa mais ampla. Concordando ou divergindo, é no ato de estarmos juntos, aprendendo uns com os outros, que verdadeiramente construímos uma comunidade psicodélica mais forte e interconectada, com potencial para transformar o mundo.

Existem preconceitos e estereótipos arraigados entre diferentes comunidades, o que frequentemente dificulta o diálogo e a colaboração significativa. A PCU busca construir pontes e promover o entendimento mútuo, oferecendo uma plataforma para que pessoas se conectem através das diferenças. Também promove a capacidade de discordar de maneira construtiva, reconhecendo que podemos ter opiniões diferentes e ainda assim não sermos inimigos, mas mantermos uma relação e buscarmos pontos em comum. A antropologia nasceu da ideia de engajar com a diferença, com o conceito do Outro em seu cerne. Embora tenha enfrentado suas raízes coloniais, a importância da alteridade segue central na disciplina. O grande desafio é como se engajar com a diferença de forma a criar novas possibilidades e promover entendimentos mais profundos. Por meio dessa abordagem, a PCU incentiva o aprendizado transformador ao abraçar, e não evitar, a diferença.

A PCU é sobre criar conexões reais, um senso de comunidade e propósito compartilhado. O movimento psicodélico está em uma encruzilhada, e o que fizermos neste momento importa. Precisamos construir economias psicodélicas éticas que priorizem equidade, sustentabilidade e reciprocidade, em vez de extração e exploração. Devemos apoiar organizações indígenas e de base em suas lutas por direitos territoriais e proteção ambiental. Que este encontro seja um chamado à ação. Que seja um espaço para imaginar novos modelos, formar alianças, desafiar narrativas dominantes e reafirmar nosso compromisso com um futuro psicodélico ético, inclusivo e enraizado no respeito às tradições que vieram antes de nós, centrando as vozes das minorias.

Para concluir, o Chacruna não é apenas uma organização sem fins lucrativos; somos parte de um movimento social, uma força de ruptura no cenário psicodélico mainstream, muitas vezes dominado por flertes com forças problemáticas, elitismo acadêmico, interesses corporativos e narrativas coloniais. Não participamos apenas do discurso e do movimento psicodélico — o Chacruna tem sido uma liderança intelectual e ajudou a moldar este movimento. Temos avançado em discussões sobre abuso sexual, reciprocidade com povos indígenas, psicodélicos e comunidades queer, justiça psicodélica, proteção de usos religiosos, plantas sagradas e tradições culturais, equidade e justiça racial, vozes do Sul Global, saberes das humanidades e mais. Enquanto outros falam sobre “inclusão” e toquenizam minorias, nós buscamos construir junto com elas, e exigimos ser ouvidos. Enquanto alguns extraem saberes, defendemos a colaboração horizontal, a descolonização da filantropia e a reciprocidade. Chamamos os doadores mainstream, que controlam a maior parte dos recursos do campo, a consultarem as organizações e cocriarem de forma mais coletiva, transparente e horizontal o futuro deste movimento. Desafiamos a mercantilização das tradições sagradas, o apagamento de vozes indígenas e a apropriação da cultura psicodélica em modelos higienizados e voltados ao lucro. O Chacruna está aqui para construir pontes, não para neutralizar as diferenças, mas para fomentar um diálogo crítico e radical — que seja desconfortável quando necessário e sempre pautado na responsabilidade. Chamamos cada um de vocês a ir além da aliança passiva — a agir, defender, interromper. Escutem com humildade, colaborem com integridade, e juntem-se a nós por um futuro onde os psicodélicos não sejam apenas acessíveis, mas protegidos, respeitados e liberados dos sistemas de opressão. O renascimento psicodélico está acontecendo — mas a pergunta permanece: renascimento de quem será esse? Essa resposta está nas mãos de todos nós.

Bem-vindos à Conferência Psychedelic Culture 2025. Escolha o seu percurso e vamos juntos nessa jornada!

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Nota: Este artigo foi publicado originalmente em inglês no site Double Blind.

Capa de Pedro Mulinga.

Bia Labate

Beatriz Caiuby Labate é antropóloga, educadora, autora, palestrante e ativista comprometida com a proteção das plantas sagradas, que busca amplificar as vozes das comunidades marginalizadas no campo da ciência psicodélica. Como antropóloga brasileira queer radicada em São Francisco, foi profundamente influenciada por suas experiências com a ayahuasca desde 1996. A Dra. Labate possui doutorado em antropologia social pela Universidade de Campinas (UNICAMP) no Brasil. Seu trabalho concentra-se nas plantas medicinais psicodélicas, xamanismo indígena, cerimônias, religião, política de drogas e justiça social. Ela é Diretora Executiva do Instituto Chacruna para Plantas Medicinais Psicodélicas e atua como Especialista em Educação Pública e Cultura na Associação Multidisciplinar de Estudos Psicodélicos (MAPS). Além disso, é pesquisadora visitante na Graduate Theological Union de Berkeley e assessora da Veteran Mental Health Leadership Coalition. A Dra. Labate também é co-fundadora do Grupo Interdisciplinar de Estudos Psicoativos (NEIP) no Brasil e editora do seu site. Ela é autora, co-autora e co-editora de 28 livros, três edições especiais de revistas e de inúmeras publicações em periódicos revisados por pares (http://www.bialabate.net).

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A importância da voz indígena na Psychedelic Culture 2025: Resposta à reportagem do site Metrópoles