Onde o dano é estrutural, o cuidado é revolucionário
Por Aura Roig Forteza e Silvie Ojeda
Metzineres, por e para quem habita as margens
No coração do El Raval, um bairro multicultural de Barcelona, floresce uma iniciativa radicalmente compassiva e profundamente comunitária: Metzineres, ambientes de acolhimento para mulheres e pessoas de gênero expansivo que usam drogas e sobrevivem a situações de violência e vulnerabilidade. Este projeto cooperativo desafia a lógica institucional da saúde pública e da intervenção social e propõe um modelo de abordagem que considera o contexto estrutural de violência e exclusão que as mulheres enfrentam, a partir de uma perspectiva de redução de danos, feminismo interseccional e direitos humanos.
O modelo da Metzineres é, acima de tudo, uma ética de cuidado mútuo que reconhece a agência, o prazer, a dor e os conhecimentos de cada pessoa que entra em contato com a organização. Parte da certeza de que cada pessoa é especialista em sua própria realidade e permite que sejam elas mesmas que projetem soluções ou alternativas para as dificuldades que enfrentam, sejam elas relacionadas à moradia, trabalho, saúde, laços familiares, necessidades emocionais ou outras. Ao longo de sua longa trajetória, Metzineres compreendeu que o estigma e a proibição causam muito mais danos do que as próprias substâncias. Por isso, afasta-se de modelos punitivos e estigmatizantes que criminalizam as pessoas que usam drogas — especialmente mulheres e pessoas de gênero expansivo — para construir um espaço de acolhimento, confiança e transformação, indo além da relação que cada uma tem com seu consumo.
DESDE A SUA CRIAÇÃO, A METZINERES TEM SIDO UM REFÚGIO COLETIVO ONDE AS MULHERES QUE VIVEM NAS RUAS ENCONTRAM PAZ.
Assim, a Metzineres nasce como resposta a uma realidade inevitável: as mulheres são desproporcionalmente afetadas pelas políticas proibicionistas, pelo capitalismo selvagem e pelo patriarcado. Desde a sua criação, tem sido um refúgio coletivo onde as mulheres que vivem nas ruas encontram paz. Na Metzineres não se impõem tratamentos, oferecem-se alternativas de cuidado coletivo centradas nos desejos, nos tempos e nas decisões de cada pessoa, priorizando a autonomia e o vínculo com a vizinhança.
Por ocasião da campanha internacional “Apoie, Não Castigue”, fizemos este vídeo questionando o estigma e a discriminação enfrentados pelas mulheres que usam drogas, com foco nas redes de apoio mútuo que desenvolvemos graças ao trabalho comunitário da Metzineres em nosso bairro, El Raval.
As políticas punitivas em relação às drogas afetam as mulheres de maneira desproporcional, especialmente aquelas em situação de extrema pobreza, migração, racialização, trabalho sexual, com problemas de saúde mental ou sem-teto. A nível global, embora as mulheres representem apenas 7% da população carcerária, o encarceramento por crimes relacionados a drogas é muito maior, de acordo com o Escritório das Nações Unidas contra as Drogas e o Crime. Na Espanha, as mulheres representam cerca de 7% da população carcerária, mas na Catalunha cerca de 30% delas cumprem pena por crimes relacionados com drogas, contra 20% dos homens. Na América Latina, a situação é ainda mais grave: em países como Costa Rica, Brasil ou Argentina, entre 60% e 80% das mulheres presas estão por infrações às leis de drogas, quase sempre em elos baixos e descartáveis do mercado — como o transporte de pequenas quantidades —, resultado de economias de sobrevivência ou vínculos coercitivos. Essa prisão em massa não afeta as lideranças do tráfico de drogas, mas se torna uma ferramenta de controle de gênero e classe, reproduzindo desigualdades e perpetuando o estigma.
O capitalismo selvagem também exerce uma violência estrutural sobre as mulheres, ao relegá-las aos setores mais precários do mercado de trabalho, à economia informal e às tarefas de cuidados não remuneradas. De acordo com a ONU Mulheres, elas representam 70% da população mundial que vive em situação de extrema pobreza e são maioria entre aqueles que migram por razões econômicas, climáticas ou de violência. Ao se cruzarem com o racismo, a transfobia e o capacitismo, essas dinâmicas empurram muitas mulheres e pessoas de gênero expansivo para a marginalidade, dificultando o acesso a serviços básicos, moradia digna ou proteção legal. A desigualdade econômica e a falta de redes de segurança social não apenas aumentam a vulnerabilidade à violência, mas também obrigam muitas pessoas a recorrer a estratégias de sobrevivência, como o uso ou a venda de drogas, gerando estigmatização, exclusão e punição.
A DESIGUALDADE ECONÔMICA E A FALTA DE REDES DE SEGURANÇA SOCIAL NÃO APENAS AUMENTAM A VULNERABILIDADE À VIOLÊNCIA, MAS TAMBÉM OBRIGAM MUITAS PESSOAS A RECORRER A ESTRATÉGIAS DE SOBREVIVÊNCIA, COMO O USO OU A VENDA DE DROGAS, GERANDO ESTIGMATIZAÇÃO, EXCLUSÃO E PUNIÇÃO.
Arte de Fernanda Cervantes.
Nesse cenário, a chamada “guerra contra as drogas” tem sido o berço de uma máquina global de exclusão, morte e encarceramento em massa. Nascida sob um discurso de ordem e moralidade, essa guerra tem servido de pretexto para a militarização de territórios, a expansão do controle policial e o enfraquecimento dos direitos civis, tudo isso com um forte viés de gênero, raça e classe. As mulheres e as pessoas de gênero expansivo ficam presas entre a violência institucional do proibicionismo e a violência estrutural do abandono estatal, ficando expostas à perseguição, ao abuso policial, à perda da custódia de seus filhos e ao encarceramento por atos que, em outros contextos sociais, não seriam criminalizados. Longe de reduzir os danos associados ao uso de substâncias, o proibicionismo os intensifica, especialmente para aqueles que já foram historicamente excluídos dos espaços de cidadania e cuidado. Por isso, na Metzineres afirmamos que desmantelar a guerra contra as drogas é também uma tarefa feminista, anticapitalista e de justiça social.
LONGE DE REDUZIR OS DANOS ASSOCIADOS AO USO DE SUBSTÂNCIAS, O PROIBICIONISMO OS INTENSIFICA, ESPECIALMENTE PARA AQUELES QUE JÁ FORAM HISTORICAMENTE EXCLUÍDOS DOS ESPAÇOS DE CIDADANIA E CUIDADO.
A Metzineres desenvolve um modelo de abordagem único que combina a redução de danos com uma perspectiva feminista interseccional, reconhecendo que as experiências das mulheres que usam drogas são atravessadas por múltiplas formas de opressão, como gênero, classe, racismo ou migração. Essa abordagem se materializa na criação de espaços seguros e de descanso, onde se privilegia o bem-estar, o consentimento, a calma e o direito de existir sem ser constantemente vigiada, expulsa ou criminalizada. Além disso, é oferecido um acompanhamento integral que abrange dimensões jurídicas, sanitárias, afetivas e culturais, permitindo que cada pessoa tenha acesso aos seus direitos e necessidades sem imposições ou paternalismos, a partir de um respeito radical pelos seus tempos e desejos.
Por meio de dinâmicas artísticas, educativas e de autocuidado, promove-se o empoderamento coletivo e a revalorização de conhecimentos e práticas que historicamente foram invisibilizados ou desprezados, favorecendo processos de reconstrução subjetiva e política. Tudo isso se articula com um trabalho constante de incidência política, que busca transformar as estruturas que perpetuam a exclusão, levantando a voz das pessoas que usam drogas como agentes ativas de mudança, com propostas concretas e legitimidade social para redefinir as políticas públicas a partir da experiência que elas e suas comunidades vivem.
Esta abordagem é construída a partir da horizontalidade, do cooperativismo, da descolonialidade, da visão transfeminista e da não patologização. Trata-se de tecer redes de afetos e resistências, onde o cuidado não é um serviço, mas um exercício coletivo. Em um momento em que o uso terapêutico e espiritual de substâncias psicodélicas ganha legitimidade, é urgente olhar para aqueles que foram historicamente expulsos desses discursos e espaços. O acesso desigual à construção de políticas de drogas centradas nas pessoas e no seu bem-estar, bem como a contextos de uso seguro, deixou de fora muitas mulheres, pessoas trans, migrantes, pessoas com diagnósticos psiquiátricos ou em situação de rua.
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A METZINERES CONVIDA A COMUNIDADE PSICODÉLICA A AMPLIAR SEU QUADRO ÉTICO: NÃO BASTA DESCRIMINALIZAR OU “INTEGRAR” O USO DE ENTEÓGENOS SE NÃO FOREM ABORDADAS AS VIOLÊNCIAS ESTRUTURAIS QUE ATRAVESSAM OS CORPOS HISTÓRICA E SISTEMATICAMENTE EXCLUÍDOS E PRECARIZADOS.
A Metzineres convida a comunidade psicodélica a ampliar seu quadro ético: não basta descriminalizar ou “integrar” o uso de enteógenos se não forem abordadas as violências estruturais que atravessam os corpos histórica e sistematicamente excluídos e precarizados. Uma política de drogas verdadeiramente transformadora deve ser, antes de tudo, uma política de cuidado e justiça social.
A Metzineres é uma cooperativa de iniciativa social sem fins lucrativos que tem conseguido se sustentar graças à força de seus membros, redes comunitárias e apoios pontuais. No entanto, a sustentabilidade econômica continua sendo um desafio crítico. Para que esse modelo continue crescendo e alcance mais pessoas, precisamos de apoio financeiro, alianças solidárias e divulgação comprometida.
Convidamos aquelas e aqueles que compartilham nossa visão — seja a partir do ativismo, da pesquisa, da arte, do mundo psicodélico ou da área dos direitos humanos — a colaborar na construção desses espaços de resistência. Porque em um mundo que continua marginalizando aqueles que vivem na interseção de múltiplas violências, uma mudança radical é necessária: colocar as margens no centro, transformar a política pública a partir das bases e cuidar sem condições.
Apostar na Metzineres é apostar em um futuro onde o cuidado, a autonomia e a justiça se entrelaçam em cada decisão.
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Nota: Este artigo foi publicado originalmente em inglês no site Chacruna Institute.
Capa de Michelle Velasco.
Tradução de Paula Bizzi Junqueira.
Aura Roig Forteza
Aura Roig Forteza é antropóloga social e diretora fundadora da Metzineres, uma cooperativa que cria ambientes protegidos para mulheres e pessoas de gênero diverso que usam drogas e enfrentam violência e exclusão. Ela trabalha internacionalmente em políticas de drogas, redução de danos, direitos humanos e justiça de gênero, reunindo pesquisa e prática. Seu trabalho se estende por todo o mundo.
Silvie Ojeda
Silvie Ojeda é diretora de comunicação da Metzineres. Especialista em comunicação altamente criativa e com mentalidade estratégica, além de artista visual dedicada a abordar questões complexas de direitos humanos, promover o engajamento e impulsionar mudanças positivas em escala global.